quinta-feira, outubro 18, 2007

Amália nos "grandes portugueses" na RTP1

O que dizer de Amália Rodrigues?
Que é um dos símbolos de Portugal e a voz de uma nação inteira.
E também que foi a grande responsável pela reinvenção do fado. Deu-lhe novo fulgor e cantou o repertório tradicional de forma ímpar.
Ultrapassou todas as fronteiras e preconceitos culturais. “O fado era uma arte antes de Amália, e passou a ser outra depois de Amália”, diz o pianista e compositor Bernardo Sassetti.
Conseguiu, como ninguém, ter um pé na erudição, outro na magia.
E isso alvoroçava a fantasia do País. “Há um mistério naquela voz”, suspira a fadista Kátia Guerreiro.
Numa frase: Amália foi única. “Não foi em vão que, em 2000, centenas de críticos em todo o mundo consideraram-na uma das três vozes do século XX. As outras foram Frank Sinatra e Maria Callas”, revela o fadista João Braga. A diferença é que tanto Callas como Sinatra cantavam com grandes orquestras e com extraordinários maestros a dirigi-los. “Amália, não! Tinha um guitarrista de um lado, um violista do outro, e lá ia ela, a cantar uma língua dificílima, que só para nós é acessível”, acrescenta João Braga. Amália foi a quinta filha de uma prole de nove. Durante a infância, não teve brinquedos, mas sabia duas ou três cantigas. Os vizinhos pediam-lhe para cantar e enchiam-lhe os bolsos do bibe com rebuçados e moedas. Até aos 12 anos andou na escola, que adorava, onde o tempo era dela e da sua fantasia. Ali não tinha de ajudar nas lides domésticas. “A história de Amália é quase a história da Cinderela”, compara o encenador Filipe La Féria, que encenou o musical “Amália”. Depois dos 12, chegou a altura de contribuir para o sustento da casa - como acontecia com todas as famílias pobres. Aprendeu o ofício de bordadeira e, mais tarde, trabalhou numa fábrica de bolos e rebuçados. Recebia seis escudos por dia. Em 1938 Amália Rodrigues representou o Bairro de Alcântara, onde vivia, no Concurso da Primavera, em que se disputava o título de “Rainha do Fado”. Cantou, aqui e ali, cantigas tradicionais e danças rurais, do vira ao malhão, bem como as marchas populares nas festas dos santos de Lisboa. “Uma rapariga que vendia limões e maçãs no cais será conhecida em todo o mundo por cantar o fado”, refere Filipe La Féria. No começo de 1939, Amália fez a sua estreia profissional no Retiro da Severa. No ano seguinte actuou no Solar da Alegria, como artista exclusiva, com repertório próprio. Estreou-se no Teatro Maria Vitória, na revista “Ora Vai Tu”, personificando a fadista vestida com xaile negro. “Amália subiu a pulso. Rapidamente aprendeu a falar várias línguas, tinha uma grande versatilidade”, sublinha Kátia Guerreiro. Amália sempre teve fome de conhecimento. Aprendeu depressa, com voracidade, como quem devora um banquete real. Ainda hoje ouvi-la cantar é um bálsamo para a alma - emociona até aos ossos. Provoca em quem a ouve um incêndio. “Não é uma forma de sair da tristeza. É uma forma de entrar na tristeza extraordinária e depois sair dela. Às vezes, é preciso ser-se tão triste para se ser capaz de ser tão feliz”, diz José Carlos Malato, apresentador da RTP, assumindo a sua admiração por Amália. A jovem Amália Rodrigues impressiona todos. Canta com intensidade dramática. “O que interessa é sentir o fado. Porque o fado não se canta - acontece. O fado sente-se, não se compreende, nem se explica”, dizia ela com frequência. “Na sua voz está toda a gesta do nosso povo: sofrimento, alegria, afectuosidade, melancolia, genialidade”, diz o escritor Fernando Dacosta. Em 1943 Amália Rodrigues estreia-se com grande sucesso em Madrid, a convite do embaixador português. Começa o seu fulgor internacional. Em 1944 está no Brasil - e é o delírio. “Criou todo um novo ritual para o fado: a maneira como está no palco, como se veste, com um bom gosto extraordinário. Dava-lhe a dimensão de diva”, opina Fernando Dacosta. O truque? Soube ser simples e sofisticada. Estar com o povo e, em simultâneo, com as elites. Em 1949 Amália já fizera grande sucesso no Brasil e em Madrid. Os seus discos eram vendidos em 16 países. Pela primeira vez vai a Londres e a Paris a convite de António Ferro. “Foi a mulher mais célebre do século XX português”, afirma, peremptório, o historiador Vítor Pavão dos Santos, autor da biografia de Amália Rodrigues. “Consubstanciou no canto aquilo que é ser português.” Em Roma, Amália quebrou um tabu. Cantou no Argentina, um teatro de ópera. Neste espectáculo participaram a cantora lírica Maria Caniglia, o violinista Jacques Thibault e o tenor Fiorenzo Tasso, acompanhados por uma orquestra sinfónica. Amália era a única cantora ligeira. Estava sozinha com a guitarra portuguesa de Raul Nery e a viola de Santos Moreira. Quando entrou em palco não conseguiu disfarçar o medo. “Acho que tive o público comigo, ainda antes de começar”, revelou ela. O sucesso foi avassalador. “Ela tinha grande sentido de espectáculo. Vê-la era diferente de ouvi-la”, sublinha Vítor Pavão dos Santos. “Tinha um contacto mágico com o público.” Fazia sempre, em cada novo espectáculo, uma entrada triunfal, daquelas que nos fazia cair o queixo de puro pasmo. No palco, era um vulcão à beira da erupção, com os seus olhos sedutores a olhar a plateia. “O fado, quando comecei, era amarrado como se tivesse uma só divisão, e a minha maneira de cantar deu-lhe mais duas casas. A minha voz queria fugir dali, mas batia na porta. Tive que cantar à minha maneira”, dizia ela. “É uma mulher profundamente portuguesa. Teve muitas oportunidades de ir viver para fora de Portugal, mas escolheu sempre a Rua de São Bento”, conta Filipe La Féria. Amália tem a arte de sincronizar o que é urbano e rural, o que é popular e erudito, através de uma voz de timbre único, cheia de emoção sensual e musical. “Tem um toque de divindade”, diz José Carlos Malato. “Ouvi-la convoca-nos para uma espécie de liturgia das palavras. É algo mais do sagrado do que do profano. Ninguém diz aquelas palavras com aquela intensidade. Ela não grita. Ela morde as palavras, acaricia-as, solta-as, puxa-as”, diz José Carlos Malato. Para além de tudo disto, Amália Rodrigues fez uma espécie de voo rasante pela poesia portuguesa. Os poetas Pedro Homem de Mello e David Mourão-Ferreira escreveram para ela. Cantou os grandes poetas da língua portuguesa, dos trovadores a Camões, e de Bocage aos poetas contemporâneos, guiada sempre, segundo dizia, pela intuição. “Fez da língua uma pátria imensa”, lembra Kátia Guerreiro. “Amália foi quem mais divulgou, em termos planetários, a nossa poesia”, corrobora João Braga. Tinha uma faceta interessante, que poucos conhecem: Amália foi uma extraordinária poetiza. “Se não fosse o génio que era como cantora, ficaria na história da literatura portuguesa do século XX como grande poetiza”, sugere Fernando Dacosta. No fim da vida, Amália Rodrigues intensifica a sua nostalgia. Às vezes parecia levar a tristeza ao peito. Também por isso Amália é um ícone incontornável de Portugal. “Ela foi uma mulher tremendamente só, mal compreendida e morreu muito amargurada com todos os portugueses”, garante Filipe La Féria. “Perdeu a voz, e quando perdeu a voz, morreu.” Amália tinha um terrível medo da morte. Mas nem ela, com o seu toque de divindade, conseguiu driblá-la: a morte bateu-lhe mesmo à porta no dia 6 de Outubro de 1999. Para a história, ficam as palavras do poeta David Mourão-Ferreira, que a considerava “a voz da diáspora e a voz do ‘terroir’ (chão), a voz da distância e da intimidade, com a amplitude das mais altas vagas e a tocante discrição de recolhidos santuários”.


Para saber + sobre amália e outros grandes portugueses: http://www.rtp.pt/wportal/sites/tv/grandesportugueses/

Sem comentários: